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CHUVEIRO OCO


Dizem que mais cruel que negar algo a uma pessoa é deixa-la provar antes, e privá-la depois. De coisas abstratas como a esperança de liberdade até as concretas como água e comida, ou um brinquedo que um primo mais abastado deixa seu primo de origem mais humilde ver, mas jamais brincar. Nada chega perto de um chuveiro oco.


Nem mesmo as amostras grátis de coisas gostosas.


“Está sentindo essa água quentinha caindo aos pouquinhos? Pois é, ela não vai aumentar.” (Podemos ainda acrescentar aqui umas risadas malignas, do tipo “há há há”).


Típico pensamento que passa pela cabeça de um chuveiro dessa espécie. Sabe aquele banho quentinho e gostoso? É isso que não acontece quando você tem um chuveiro desses em casa.


Esse artefato maligno possivelmente nasceu do fruto de alguma bruxaria de um antigo e sádico mestre da tortura chinesa. Nem mesmos os mais avançados sadomasoquistas praticam tamanho autoflagelo.


O banho nos dias frios já requer demasiada força de vontade. Eu o classifico como “banho de duas coragens”. A de entrar e a de sair.

Quando se tem um chuveiro oco em casa aí é banho de uma coragem só, a de entrar, porque sair se torna uma meta a ser alcançada o mais rápido possível. Dizem por aí que o que não nos mata nos deixa mais fortes, mas até hoje não consegui sair deste confronto de cabeça erguida e me sentindo vitorioso. E não, ao contrário do que diz o Frejat em sua música “Por você”, eu não tomaria banho gelado no inverno, por ninguém. Mesmo que isso fosse necessário para salvar alguma vida.


Não imagino que tipo de coração se conquiste com um sacrifício tão idiota desse, a única coisa que dá pra ganhar aqui é uma gripe ou pneumonia.


Para os que não conhecem o amargor da vida, vou explicar: chuveiro oco é aquele onde a água só sai pelos orifícios da borda, deixando um espaço imenso no meio que apenas o frio consegue preencher. Isso quando ela não se projeta em direção as paredes...Ninguém merece.


Agora, porque apenas os orifícios centrais entopem eu não faço a menor ideia, só sei que nunca vi um chuveiro entupido nas configurações Lua Minguante, Meio-a-Meio e Espiral Logarítmica. Talvez seja causado por algum mal olhado brabo, ou pegadinhas de um Exú travesso.


Cretinisses de uma vida que gosta de rir da nossa cara.


Encara-se o banho como uma aula de yoga, ficar imóvel equilibrando-se em um só pé, porque o outro está devidamente colocado sobre o que está no chão, recebendo a escassa água que escorre pelas pernas. Mantem-se os braços colados ao corpo, ao menor movimento eles saem da redoma ínfima de ar quente que o cerca e são atingidos pelo vento glacial, vento este que jamais será vencido por um quantia de vapor que preencheria uma sauna de dimensões da casa da Barbie. Sua cabeça tem que ficar rodopiando lentamente, de forma a recolher a água e orientá-la a escorrer por alguma parte do corpo que está fria, esquentada essa região direciona-se a cabeça para outro lado, e assim sucessivamente até fechar o ciclo.


Lavar a cabeça é um problema, mas tudo é feito usando um braço apenas, o outro, egoísta, tenta conservar-se quente. Todo o corpo é lavado de forma a não precisar se curvar, nessa hora são reveladas habilidades incríveis de alongamento até então desconhecidas, capazes de fazer os mestres do contorcionismo e artistas de circo se curvarem (mais do que já o fazem) de inveja. Cenas como trazer o pé quase a altura do rosto se tornam necessárias, tudo isso para evitar um choque térmico, que como nos alertou alguma tia durante toda a infância, pode te deixar todo torto. Só não mais torto do que você já fica tentando ensaboar a orelha esquerda com o pé direito.


Todo o longo tempo de aflição não dura mais que dez minutos, e olhe lá. Toda a água e energia que você gasta ao longo do ano enquanto ouve seus pais falando "sai logo desse chuveiro" é economizada nessa época. Mas esses dez minutos podem ser reduzidos para cerca de cinco, dizem alguns cientistas. Mas isso apenas quando o chuveiro é equipado com um item opcional, "a fresta". Aquela por onde escorre um fio espesso de água gelada que nos atinge direto na cabeça, e logo em seguida escorre pelo meio das costas, independentemente de onde se origine no chuveiro.


Não sei não, mas acho que se no inverno esses chuveiros fossem usados em interrogatórios, não escapava um.






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